segunda-feira, 11 de maio de 2009

A solidão e as cidades


"Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me,
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão".

Carlos Drummond de Andrade, no poema A Bruxa



Dia desses, ouvindo uma das mais belas canções de Chico Buarque (As vitrines*) fui possuído pela lembrança de uma pessoa por quem tenho imensa afeição e que atualmente se encontra, mais até do que a distância geográfica - concreta e existente -, muito longe de mim.

Lembrei-me também - e é isso o que importa aqui, afinal - de um poema de Ferreira Gullar, parte integrante daquele que é, talvez, o seu mais popular livro (e, na minha opinião, o melhor), Dentro da noite veloz, lançado na década de 1970. Reencontrei o texto numa reunião de sua obra** adquirida no ano passado: o poema em questão é Pela rua.

Tanto em Pela rua quanto n'As vitrines os dois poetas tratam, de maneira invulgar, de tema bastante frequente: os encontros e (principalmente) os desencontros que ocorrem todos os dias, todas as horas, nas grandes cidades; "cidade" que "era um vão" nas palavras de Chico Buarque; e "cidade" que "é grande/ tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só", nos versos de Gullar. Enxerga-se todo o complexo tecido urbano a partir da relação deste com o "objeto" de estima (o nosso e o deles).

Chico Buarque, mais sintético - até porque se trata da letra de uma composição musical - mas não menos extraordinário, encontra, na própria paisagem da cidade, os meios para fixar-se numa individualidade: "os letreiros a te colorir/ embaraçam a minha visão"; e, mais adiante: "nos teus olhos também posso ver/ as vitrines te vendo passar".

Ainda que elabore versos como "cruzas a rua/ miragem/ que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios/ e se esvai nas nuvens", Ferreira Gullar, em Pela rua, prefere enfocar a multiplicidade que caracteriza o espaço urbano e como isso se liga à pessoa desejada:

"Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
talvez na rua ao lado, talvez na praia
talvez converses num bar distante
ou no terraço desse edifício em frente,
talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,

misturada às pessoas que vejo ao longo da Avenida.

Mas que esperança! Tenho

uma chance em quatro milhões".

É estranho, embora facilmente explicável, que as grandes cidades sejam lugares de muita solidão, mesmo com tantas e tantas pessoas nas ruas, nos bares. Suas multidões nos provocam a perversa ilusão de que estamos em companhia. Não obstante, não consigo imaginar outro tipo de lugar para viver.

E é curioso constatar que dois fatores essenciais para a convivência moderna - o princípio da impessoalidade (uma das poucas contribuições positivas que o capitalismo ajudou a sedimentar em parte de nosso comportamento e em um sem-número de relações sociais) e o senso de preservação da vida privada (no sentido de distingui-la da esfera pública) são também os responsáveis por esse sentimento de solidão. Contudo, aprofundar-se nessa reflexão foge (e muito) da capacidade analítica deste blogueiro.

Melhor é ouvir a canção e ler o poema.
___________
* do disco Almanaque, de 1981

** GULLAR, Ferreira. Toda poesia (1950 - 1999). 16 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008