sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Detalhes



Não faz muito tempo, assisti a uma matéria no Jornal da Globo que me deixou encantado. Era sobre as chamadas impressoras 3D, maquinário do qual nunca tinha ouvido falar antes. As tais impressoras são capazes de moldar objetos a partir de um desenho gerado por um programa específico. É ... Somando esta façanha aos incríveis efeitos especiais obtidos pela computação gráfica e empregados, largamente, no cinema - quando se pode realizar quase tudo, visualmente falando - fica difícil não constatar a tal "era da imagem".

Mas o que o romancista norte-americano William Faulkner tem a ver com isso? Ora, numa época de domínio extremo da visualidade, como fica a Literatura, esta arte essencialmente feita de palavras (levando em conta que, como nos impinge o lugar-comum, mil delas não valem sequer uma imagem)? Antes de prosseguir a discussão, leiamos este trecho do livro Santuário*, de Faulkner (é um pouco longo, peço boa vontade).

"Temple tirou os sapatos, colocou-os na cama e enfiou-se sob a colcha. Tommy ouviu o ranger do colchão. Ela não se deitou imediatamente. Ficou sentada, ereta, imóvel, o chapéu licenciosamente colocado. Depois puxou para perto da cabeça o cantil, o vestido e os sapatos, endireitou o impermeável sobre as pernas e deitou-se, puxando a colcha. Sentou-se novamente, tirou o chapéu e sacudiu os cabelos. Colocou o chapéu ao lado dos outros objetos e preparou-se para tornar a deitar-se. Fez nova pausa. Abriu o impermeável, tirando de um dos bolsos um porta-pó. Mirando-se no espelhinho, espalhou os cabelos, afofando-os com os dedos. Empoou o rosto, guardou o porta-pó, olhou de novo o relógio e abotoou o impermeável. Colocou as roupas, uma a uma, sob a colcha, deitou-se e puxou a colcha até o queixo. As vozes tinham-se calado por momentos. No silêncio, Tommy podia ouvir o leve e persistente ruído da palha do colchão onde Temple se deitara, de mãos cruzadas no peito, pernas estendidas e decentemente unidas, como efígie nalgum túmulo antigo".

O excerto acima está no capítulo 8, um dos precedentes ao evento brutal que marca o livro inteiro. Por que o narrador de Faulkner preocupa-se tanto em descrever, em pormenores, a maneira como a adolescente Temple movimentava-se ou dispunha seus objetos? Tenho uma interpretação.

O objetivo aqui é duplo: primeiro o narrador procura transmitir, mesmo com crueldade, a atmosfera entremeada de tensão, violência e medo que perpassa a narrativa; segundo, manter o leitor em terreno pouco confortável, mesmo com prolixidade, para que o suspense e o horror não se percam.

Umberto Eco observou certa vez** que

"[...] as pessoas em geral acreditam que a diferença entre literatura popular e literatura erudita reside no fato de que esta última é repleta de longas descrições, enquanto aquela primeira vai direto ao assunto".

Obviamente - e Eco deixa isso claro em seu livro - esta diferença é simplista e equivocada. Só para efeito de ilustração, conheço pessoas que dizem achar Machado de Assis "difícil" porque ele é muito descritivo... Justamente Machado de Assis, um dos escritores mais concisos de nossa Literatura e que, raramente, lançava mão de longas descrições... Mas voltemos ao nosso assunto.

O narrador de Faulkner é detalhista e descritivo porque isso atende ao plano do livro Santuário. Muito provavelmente sua organização - capítulos pequenos e com alguns deles sem conexões diretas entre si - não seria possível, assim como os efeitos que provoca no leitor não se dariam, caso o autor adotasse outra estratégia.

Os detalhes, nesta como em outras narrativas, são tudo. E, sem necessidade de recursos visuais, só se extrai a expressividade deles graças às palavras, habilmente arranjadas.

* FAULKNER, William. Santuário. São Paulo: Abril Cultural, 1980 [Tradução de Lígia Junqueira Caiuby]

** ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994 [Tradução de Hildegard Feist]