quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A vida: modo de usar (2)


Georges Perec levou cerca de nove anos para concluir A vida: modo de usar*. É um livro feito com o cuidado do artífice, do artesão. Não à toa, o construtor dos quebra-cabeças, Gaspard Winckler, personagem essencial da trama, impõe-se no romance por sua paciência e a imensa habilidade de artesão. Por outro lado, à medida que se vai lendo, começa a se desenhar, para o leitor, um projeto perceptível por trás de tudo o que está naquelas páginas. E a esse respeito, vale a pena ler o capítulo XXVI (2ª Parte), quando o protagonista Bartlebooth estabelece os "três princípios diretivos" de seu plano pessoal. Mais uma vez, personagem e autor se tocam.

Mas A vida: modo de usar não "funcionaria" se o jogo proposto deixasse de convidar o leitor a participar. Porém, como apreender todo o romance (ou romances, com está no subtítulo da obra)? Sucedem-se descrições/enumerações extensas e altamente meticulosas dando conta, por exemplo, de receitas culinárias, catálogos para venda de produtos, cardápios de jantares e outras festividades, bem como quadros, obras de arte e livros criados por autores inexistentes (ao mesmo tempo em que se fala de pessoas cuja existência pode ser comprovada no plano da realidade). O livro reproduz, inclusive graficamente, fragmento de jornal, cartão de visita, cartaz de espetáculo, nota de falecimento, página de palavras-cruzadas, etc.

Há ainda dezenas de personagens cujas histórias ocorreram num intervalo de tempo bastante amplo e em lugares variados do mundo (embora o prédio situado no meio da rua Simon-Crubellier seja o centro espacial da(s) narrativa(s)). O leitor precisa parar para respirar!

Li o livro duas vezes seguidas. Na primeira, linearmente, segui a ordem numérica sem salto algum ; na segunda, optei por escolher os capítulos por meio dos personagens ou locais do prédio destacados em cada um deles, fazendo ordenamentos de leitura provisórios. Mas certamente é possível "movimentar-se" pela obra de outras maneiras.

Na postagem publicada em 04/10/11, observei que o livro guarda semelhança com as enciclopédias. E isso pode ser comprovado tanto pela abundância de "informação"** a circular pelo texto, quanto pelos índices remissivos e referências cronológicas disponíveis na seção de anexos de A vida: modo de usar.

Durante minha leitura suspeitei de que um livro assim só poderia ser o resultado do trabalho de um escritor que foi também um leitor inveterado. E estava certo: no Pós-escrito, Perec lista os autores dos quais extraiu algo para compor sua(s) narrativa(s): Borges, Calvino, García Márquez, Thomas Mann, Nabokov, Rabelais, Kafka, Flaubert, Jules Verne e mais 20 outros.

. . . . . . 

Não gostaria de encerrar essa primeira discussão sobre A vida: modo de usar (certamente voltarei a escrever sobre esse livro) sem apresentar ao(à) leitor(a) pelo menos um pouco da criatividade e da elegância da escrita de Georges Perec. Para isso escolhi o capítulo LX (3ª Parte), no qual se conhecem as ocupações do personagem Cinoc.

Ao chegar ao edifício, a concierge teve dificuldade para saber dizer corretamente o nome do novo morador. Consultou outros e lhe foram apresentadas algumas soluções de pronúncia que o narrador expõe de modo didático (e irônico). O próprio nomeado não fazia questão disso.

Cinoc "exercia um curioso ofício. Como ele próprio se dizia, era um ' matador de palavras ': trabalhava na atualização dos dicionários Larousse", eliminando os vocábulos e significados fora de uso.

Escreve Perec:

"Quando se aposentou, em 1965, após cinquenta e três anos de escrupulosos serviços, fizera desaparecer centenas e milhares de ferramentas, de técnicas, de costumes, de crenças, de ditos, de pratos, de jogos, de apelidos, de pesos e medidas; riscara do mapa dezenas de ilhas, centenas de cidades e rios, milhares de capitais de cantões; devolvera ao anonimato taxionômico centenas de espécies de vacas, pássaros, insetos e serpentes, de peixes um tanto especiais, variedades de conchas, plantas não de todo semelhantes, tipos particulares de legumes e de frutos; fizera desaparecer na noite dos tempos coortes de geógrafos, missionários, entomologistas, de Pais da Igreja, homens de letras, generais, Deuses e Demônios".

Na próxima semana, começo a escrever sobre O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar.

* PEREC, Georges. A vida: modo de usar. São Paulo: Companhia das Letras, 1991 [tradução de Ivo Barroso]

** Por se tratar de uma obra obra ficcional, o conceito de informação precisa ser aqui um pouco alargado. O livro apresenta certa quantidade de dados factuais, mas a maior parte da matéria narrada se baseia em situações inventadas, inclusive a partir de lugares e pessoas existentes no plano da realidade.

BG de Hoje

Essa canção me lembra uma época em que meu corpo conseguia resistir a noites e noites de bebedeira e quase sem dormir. Não sinto saudade daquele período, embora fosse melhor do que hoje: MEGADETH, A secret place.