segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A náusea: romance da contingência



" 'Mas por que', pensei, 'por que tantas existências, já que todas se parecem?'. Para que tantas árvores, todas iguais? Tantas existências fracassadas e obstinadamente recomeçadas e novamente fracassadas - como os esforços desajeitados de um inseto caído de costas? (Eu era um desses esforços)".


do personagem-narrador Roquentin, em A náusea, de Jean-Paul Sartre

 
Não é segredo que se compreende melhor a filosofia de Jean-Paul Sartre através da leitura de sua ficção e de seu teatro, pois seus textos propriamente filosóficos, na minha opinião, costumam ser difíceis (excetuando, talvez, os ensaios A imaginação e Que é a literatura?, além do opúsculo O existencialismo é um humanismo).

A problemática da existência e a indeterminação que caracteriza a condição humana são, naturalmente, tematizadas nas centenas de páginas da principal obra filosófica do autor - O ser e o nada (originalmente publicada em 1943); contudo, a argumentação de Sartre nesse tratado é, frequentemente, de uma aridez intimidadora. Por sua vez,  o romance A náusea (lançado antes, em 1938) é composto pelos mesmos temas, sendo, contudo, muito mais agradável de se ler.

Devo confessar, entretanto, que não atinei para a profundidade da reflexão proposta por A náusea quando o li pela primeira vez, há quase 25 anos. Estava no fim da adolescência, confuso, num dos piores momentos de minha vida. Não compreendi que o ritmo lento da narrativa era intencional e artisticamente relevante. Ainda assim, de alguma forma, o livro deixou-me um tanto perturbado. Já tinha ouvido, não sei quando nem onde, a máxima "A existência precede a essência" - que o filósofo francês amplificou por meio de seus escritos, mas não compreendia seu significado. Busquei interpretá-la através do que encontrei no romance sartreano e não tive êxito. Felizmente, voltei ao livro diversas outras vezes (inclusive no último fim de semana, para escrever esta postagem) e hoje entendo-o melhor, além de me sentir afetivamente ligado a ele.

Foi através de A náusea que compreendi plenamente o que é a contingência e como esta é um elemento preponderante na realidade que nos cerca.

Antoine Roquentin, o personagem-narrador do livro, registra no seu diário a certa altura*:

"O essencial é a contingência. O que quero dizer é que, por definição, a existência não é a necessidade. Existir é simplesmente estar presente; os entes aparecem, deixam que os encontremos, mas nunca podemos deduzi-los. Creio que há pessoas que compreenderam isso. Só que tentaram superar essa contingência inventando um ser necessário e causa de si próprio. Ora, nenhum ser necessário pode explicar a existência: a contingência não é uma ilusão, uma aparência que se pode dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito: esse jardim, essa cidade e eu próprio. Quando ocorre que nos apercebamos disso, sentimos o estômago embrulhar, e tudo se põe a flutuar [...]: é isso a Náusea [...]"

E mais à frente, ele acrescentará:

"Agora eu sabia: as coisas são inteiramente o que parecem - e por trás delas... não existe nada".

O que Roquentin quer dizer ao leitor (e, provavelmente, o autor também o quer, através do personagem) é que não há uma "realidade além da realidade" ou um desígnio (externo a nós), predeterminação ou destino a conduzir as vidas dos indivíduos. Uma existência simplesmente existe, aparece, dá-se a ver. Não é necessária; é contingente, gratuita. E farão parte da condição humana as tentativas de prover essas existências (caso surjam sob a forma de vidas individuais) de significado e de sentido, porque estes não nos foram dados de antemão. Mas, como se pode perceber, bastando olhar para dentro de si, trata-se de tarefa nada simples. Porque essa atribuição de significado e sentido precisa ser feita a todo instante por meio das ações que se escolhe fazer - ou deixar de fazer (lê-se em O existencialismo é um humanismo**: "Um homem embrenha-se na sua vida, desenha o seu retrato, e para lá desse retrato não há nada". E logo adiante, Sartre arremata: "O que queremos dizer é que um homem nada mais é do que uma série de empreendimentos, que ele é a soma, a organização, o conjunto das relações que constituem estes empreendimentos").

Há ainda outro aspecto sobre o qual gostaria de falar. As obras literárias que mais tocam os leitores muitas vezes extraem seu poder de atração do sentimento de identificação que nutrimos por determinados personagens. Angústia, de Graciliano Ramos,  por exemplo, é um de meus livros prediletos (como já escrevi aqui) porque, entre outras razões, olho para o personagem Luís da Silva como um espelho. Os demônios e Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski, também são mais significativos para mim por causa de, respectivamente, Kirílov e Ivan Karamazov.

Voltando ao livro de Sartre. Antoine Roquentin, apesar de ser um historiador culto e um ocioso da classe média (ele próprio registrou em seu diário: "Não tenho problemas, tenho dinheiro, fruto de rendas, não tenho patrão [...]"), relata sentimentos - desespero, angústia, desamparo - em nada diferentes dos meus (pobre-diabo que sou). Já senti - e sinto frequentemente - a misantropia de Roquentin (o excerto abaixo expressa tão bem o que penso a respeito dos indivíduos em geral!):

"Eles são sossegados, um pouco taciturnos, pensam no Amanhã, isto é, simplesmente um novo hoje; as cidades dispõem apenas de um único dia que retorna igualzinho todas as manhãs. Só o enfeitam um pouco aos domingos. Que imbecis! Repugna-me pensar que vou rever seus rostos espessos e tranquilos. Eles legislam, escrevem romances populistas, casam-se, cometem a extrema tolice de fazer filhos"

Grandes obras literárias também nos deixam lições. De A náusea, extraí esta: "Todo ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso". Essa frase nunca abandonou meu pensamento.
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* SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Rio de Janeiro: Nova Fronteiro, 1986. [Tradução de Rita Braga]

** ________. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1978 [Tradução de Vergílio Ferreira] (Coleção Os pensadores)

BG de Hoje

Como diria o filósofo Kafunga (ex-goleiro e comentarista de futebol), hoje é sem coré-coré: PANTERA, Domination.