segunda-feira, 1 de junho de 2015

Sobre nerds, geeks e a educação científica (I)


"Quando, por indiferença, desatenção, incompetência ou medo do ceticismo, dissuadimos as crianças de estudar ciência, nós as privamos de um direito seu, roubando-lhes as ferramentas necessárias para administrar o seu futuro".

Carl Sagan - O mundo assombrado pelos demônios

 
Gosto muito de assistir a desenhos animados, tanto aqueles em que se empregam as técnicas tradicionais de animação quanto aqueles compostos integralmente por computação gráfica, como, por exemplo, Operação Big Hero (Big Hero 6 - direção de Don Hall e Chris Williams, 2014), ao qual assisti no último domingo.

A Disney adaptou um título pouco conhecido da Marvel Comics (esta, como se sabe, é hoje propriedade daquela), contando com a ajuda do grupo Man of Action (criador, diga-se de passagem, da lucrativa marca Ben 10). Tantos nomes fortes da indústria do entretenimento conseguiram, no entanto, produzir uma história apenas razoável, embora não seja um passatempo de todo ruim. Imagino que se encontre por aí, disponível em lojas, milhares de bonequinhos, camisetas estampadas, álbuns de figurinhas e outras quinquilharias relativas a cenas e personagens do filme, feito sob medida para o lançamento de uma variada linha de produtos licenciados para o comércio.

Operação Big Hero, contudo, tem lá o seu valor (e não estou fazendo alusão à sua rentabilidade potencial). É uma narrativa em que, surpreendentemente, os nerds são retratados de maneira positiva. São nerds e são heróis. Melhor dizendo, conseguiram tornar-se heróis no filme em razão de serem nerds: conheciam bastante de matemática, física, química, robótica, eletrônica e essa competência foi necessária e útil para o ato heróico que executam.

Mas, deixando essa animação de lado, por que, em geral, os chamados nerds costumam aparecer de forma estereotipada e/ou negativa em desenhos, filmes ou séries de TV (inclusive em The Big Bang Theory, um produto estranhamente apreciado pelo público)? 

Antes de tentar responder, pensemos um pouco sobre o termo em si.

O Oxford Dictionary define nerd, primeiramente, como "uma pessoa ingênua ou insignificante que carece de habilidades para a convivência social ou é uma estudiosa entediante". E só depois registra, como segunda acepção: "um especialista hábil num campo técnico em particular". Já a Wikipedia ressalta que o termo é "usado frequentemente de modo pejorativo" e muitos nerds são descritos como "tímidos, esquisitões e não atraentes". No entanto, a mesma fonte reconhece que assim como outros termos pejorativos usados para estereotipar, esse "tem sido reapropriado e redefinido como um termo de orgulho e identidade de grupo". A enciclopédia colaborativa on-line também fornece (escassas) informações sobre os primeiros usos dessa palavra como gíria. Segundo o verbete, o termo - já com as conotações de tenacidade nos estudos e inaptidão pessoal - se popularizou nos EUA (e nos países anglófilos) a partir dos anos 1970, graças ao "uso intensivo no seriado cômico Happy Days".

Aqui no Brasil, a palavra nerd é hoje empregada com certa frequência; e, quando assume o sentido de pessoa muito estudiosa, substituiu expressões coloquiais mais antigas do nosso idioma, como a dinossáurica "caxias", a grosseira "CDF" e a simpática "crânio"*.

Em muitas ocasiões, podemos verificar o uso da palavra nerd para fazer referência a um outro tipo social: o geek. Considero isso um grande equívoco. Tratarei, porém, dessa confusão terminológica mais adiante.

Neste momento, gostaria de falar um pouco sobre o livro O mundo assombrado pelos demônios** (a edição brasileira acrescentou a este um ótimo subtítulo: a ciência vista como uma vela no escuro), publicado pelo astrônomo e astrofísico Carl Sagan em 1995. É um dos melhores livros não-ficcionais que conheço. Discute aspectos de metodologia científica e epistemologia, possui elementos de história da ciência, sugere formas para se divulgar melhor a atividade científica para o público em geral, além de ser uma boa fonte para a compreensão adequada do ceticismo. Tudo isso "amarrado" pela narração de alguns trechos autobiográficos, nos quais o autor fala de sua trajetória como estudioso e cientista apaixonado por seu campo de trabalho. E o livro também fornece valiosos pontos de vista sobre a educação escolar, pois foi escrito com a intenção de combater o que Sagan (e muitos outros) chamam de analfabetismo científico.

Leiamos com atenção o trecho abaixo. O autor tem em mente o contexto educacional norte-americano, mas acredito que vale também para o caso brasileiro:

"Algo aconteceu entre o primeiro ano primário e o último ano secundário, e não foi apenas a puberdade. Eu diria que é, em parte, a pressão dos pares para não se sobressair (exceto nos esportes); em parte, o fato de a sociedade ensinar gratificações a curto prazo; em parte a impressão de que a ciência e a matemática não vão dar a ninguém um carro esporte; em parte, que tão pouco seja esperado dos estudantes; e, em parte, que haja poucas recompensas ou modelos de papéis para uma discussão inteligente sobre ciência e tecnologia - ou até para o aprendizado em si mesmo. Os poucos que continuam interessados são difamados como nerds, geeks ou grinds".

Estudar com afinco ou auxiliar e incentivar quem tenha essa disposição não parecem ser prioridades em nossas sociedades. Além do mais, aqueles que se dedicam ao estudo são impopulares, considerados aborrecidos ou esquisitos. Mas Sagan alerta:

"Nós criamos uma civilização global em que os elementos mais cruciais - o transporte, as comunicações e todas as indústrias, a agricultura, a medicina, a educação, o entretenimento, a proteção ao meio ambiente e até a importante instituição democrática do voto - dependem profundamente da ciência e da tecnologia. Também criamos uma ordem em que quase ninguém compreende a ciência e a tecnologia. É uma receita para o desastre. Podemos escapar ilesos por algum tempo, porém mais cedo ou mais tarde essa mistura inflamável de ignorância e poder vai explodir na nossa cara".

Vivendo na (pomposamente) chamada era do conhecimento e dependentes da ciência, seria razoável que valorizássemos tanto a instrução e a educação quanto as pessoas dedicadas a essas atividades. Entretanto, é o que se verifica? Volto ao tema na próxima semana.
__________
* Caxias, segundo o Houaiss, proveio do título do Duque de Caxias e alude à disciplina e à aplicação desse militar; CDF (acrônimo para cu-de-ferro) refere-se a "quem apresenta aplicação extrema e mais ou menos obcecada a seus trabalhos, deveres, compromissos (diz-se especialmente de estudante)", segundo o mesmo dicionário; por fim, o Houaiss inclui como um dos sentidos do termo crânio a seguinte acepção: "pessoa de notável inteligência".

** SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 [Tradução de Rosaura Eichemberg]

BG de Hoje

Direto ao ponto: PINK FLOYD, One of these days.