terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Sobre A montanha mágica ou A importância das notas de rodapé (I)





Durante o feriado do Carnaval, estava relendo um livro de que gosto muito - Texturas: sobre leituras e escritos, da grande Ana Maria Machado (Editora Nova Fronteira, 2001). E um dos textos que o compõem (Clássicos de todas as classes*) tem muito a ver com a experiência resultante de minha primeira (recente e única) leitura da volumosa obra  A montanha mágica**, de Thomas Mann.

"O crítico e ensaísta inglês George Steiner" - escreve Ana Maria Machado - "assinala que até meados do século XX, no pós-guerra, os leitores dos livros compartiam um acervo comum de referências, a partir da Bíblia, da literatura greco-romana, de obras orientais como as Mil e uma noites, dos grandes clássicos medievais, renascentistas e modernos [...]. Qualquer escritor podia ter certeza de que, se por acaso se referisse a Catilina [o conspirador romano invectivado por Cícero] ou Adamastor [um dos titãs mitológicos, que aparece também como personagem n' Os Lusíadas], seus leitores saberiam do que se tratava. Havia um repertório clássico comum que permitia esse entendimento cúmplice".

O público leitor atual, entretanto, formou-se de maneira bem distinta. A escritora, relatando a experiência de apresentar Reinações de Narizinho para o neto, observa que muitas vezes foi preciso "fazer uma longa digressão e contar uma outra história, a cada momento do enredo, interrompendo as peripécias e cortando o ritmo do autor" para esclarecer determinadas passagens do texto de Monteiro Lobato.

Ana Maria Machado, constata, então que

"Hoje em dia, portanto, está desaparecendo essa certeza de que o leitor partilha com o autor um acervo básico de conhecimento dos clássicos. Assim, como Steiner observa, foram começando a aparecer notas aos pés de página nos livros, para explicar certas alusões e referências. A tal ponto que atualmente, diz ele, para ler a maioria das obras não-contemporâneas, em muitos casos seriam necessárias tantas notinhas explicativas que mais da metade da página ficaria comprometida tornando a leitura uma atividade penosa e arrastada, uma verdadeira corrida de obstáculos em câmara lenta".

E o que essas reflexões têm a ver com A montanha mágica? Observemos o excerto abaixo, uma fala do personagem Lodovico Settembrini, um dos pacientes do sanatório para tuberculosos Berghof e "guia" intelectual do jovem Hans Castorp, protagonista do livro:

" - Insisto com o senhor: vele pela sua dignidade! Seja orgulhoso e não se perca no ambiente estranho! Evite este atoleiro, esta ilha de Circe. O senhor não é bastante Ulisses para habitá-la impunemente. Acabará andando de quatro patas. Já está a ponto de se apoiar nas extremidades dianteiras. Daqui a pouco começará a grunhir. Cuidado!"

O personagem d'A montanha mágica faz aqui uma série de alusões à Odisseia, sobretudo ao canto X, cujo "tema" central são as desventuras de Ulisses e seus companheiros em sua primeira passagem pela ilha de Eeia, dominada pela feiticeira Circe, onde parte do grupo é transformada numa vara de porcos. Claro que, provavelmente, essas referências de Settembrini não complicarão muito a vida de um leitor razoavelmente informado, mesmo que este nunca tenha sequer corrido os olhos alguma vez pelo célebre poema de Homero. Entretanto, não se pode dizer o mesmo a respeito de diversas outras passagens do romance de Thomas Mann (inclusive um sem-número de falas do próprio Settembrini). Sente-se, durante a leitura, a necessidade de um certo apoio explicativo para atingir a melhor compreensão possível da obra - e não só em relação às citações literárias clássicas ou aos jogos intertextuais. Uma coisa resta óbvia: o leitor mediano contemporâneo (este blogueiro é um exemplo) definitivamente não está no mesmo nível de erudição do autor (a distância entre o primeiro e o segundo, sendo sincero, deve ser medida em anos-luz). Nesse caso, então, algumas notas de rodapé viriam a calhar. Mas - e a pergunta é crucial - como acrescentar tal recurso de edição/tradução numa obra notadamente robusta, com suas quase mil páginas de escrita meticulosa?

Prossigo com o assunto na próxima postagem.

* MACHADO, Ana Maria. Clássicos de todas as classes. In: __________. Texturas: sobre leituras e escritos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 138-148

** MANN, Thomas. A montanha mágica. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000 [Tradução de Herbert Caro]

BG de Hoje

Outra morte recente bastante sentida no mundo do rock (mais até do que a de outro britânico, Lemmy Kilmister, citada no último BG) foi a de DAVID BOWIE, um verdadeiro gênio da música pop. Confesso, entretanto, que nunca fui um de seus ouvintes mais fiéis. O único disco que tive do artista até hoje foi o ... Ziggy Stardust... . Desse álbum extraio a canção de hoje, Moonage Daydream, com sua arrebatadora levada de guitarra, culminando com o solo monstruoso de Mick Ronson (o músico parecia possuído pelo capeta).